domingo, 23 de setembro de 2012


Mãe
Mãe: 
Que desgraça na vida aconteceu, 
Que ficaste insensível e gelada? 
Que todo o teu perfil se endureceu 
Numa linha severa e desenhada? 

Como as estátuas, que são gente nossa 
Cansada de palavras e ternura, 
Assim tu me pareces no teu leito. 
Presença cinzelada em pedra dura, 
Que não tem coração dentro do peito. 

Chamo aos gritos por ti — não me respondes. 
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio. 
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes 
Por detrás do terror deste vazio. 

Mãe: 
Abre os olhos ao menos, diz que sim! 
Diz que me vês ainda, que me queres. 
Que és a eterna mulher entre as mulheres. 
Que nem a morte te afastou de mim! 

Miguel Torga, in 'Diário IV'
Liberdade

— Liberdade, que estais no céu... 
Rezava o padre-nosso que sabia, 
A pedir-te, humildemente, 
O pio de cada dia. 
Mas a tua bondade omnipotente 
Nem me ouvia. 

— Liberdade, que estais na terra... 
E a minha voz crescia 
De emoção. 
Mas um silêncio triste sepultava 
A fé que ressumava 
Da oração. 

Até que um dia, corajosamente, 
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado, 
Saborear, enfim, 
O pão da minha fome. 
— Liberdade, que estais em mim, 
Santificado seja o vosso nome.    

Miguel Torga, in 'Diário XII'
Devo à Paisagem as Poucas Alegrias que Tive no MundoDevo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Angelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe! 

Miguel Torga, in "Diário (1942)"

domingo, 18 de março de 2012

Scott Kahn
“A tua lei, Senhor!
Uma arma na mão,
um caminho,
e em nome da Força e da Traição,
o teu pão
e o teu vinho!

Palha que nenhum burro come!
Porque num bicho assim
a sua fome
tem princípio e tem fim!”

Neste excerto, o sujeito poético mostra alguma ironia ao demonstrar que pão e vinho não alimentam o povo, pois este último tem fome do princípio ao fim da vida. Podemos declarar também que neste excerto o “eu” poético diz-nos que a lei de Nosso Senhor é uma arma e um caminho e mostra que esse caminho é em nome da Força e da Traição.
Ken Wong
"Agora tu, Senhor Homem,
que tanto gritas em mim!
Agora tu, com dentes que me comem
e tripas que me consomem!
Agora tu, coveiro do meu fim!

Como um rafeiro vil, eis-me a teus pés,
(Depois de Deus, só tu....) nu,
a dizer-te quem és!


Longe do céu, longe da terra, aqui
neste areal do Sonho onde cheguei,
venho entregar-me a ti, 
e cuspir-te na cara a tua lei!"

Neste poema o sujeito poético diz-nos na primeira estrofe que Deus tem o poder de tudo na vida, tem o poder de pôr fim e de dar início à vida humana. Nesta estrofe podemos encontrar também uma ponta de ironia quando o "eu" poético diz "Agora tu, com dentes que me comem e tripas que me consomem!": um espírito não come nem consome.
Na segunda estrofe o sujeito poético compara-se a um cão que se debruça sobre os pés do dono.
A terceira estrofe fala-nos do fim, quando nos entregamos à morte.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Peter Malone
"Cada ser é na vida
quantos a condição adivinhar...
A areia do deserto, ressequida,
é igual à do mar.

Eras tu açoitado, que gemias,
cortado na fundura  da raiz!
Eras tu, enforcado, que morrias
a insultar o juiz!"




Desperta-se um misto de sensações ao ler este excerto, entre dor e revolta.

O sujeito poético neste pequeno excerto mostra a sua revolta contra Deus Nosso Senhor. O eu poético mostra como Cristo sofria na cruz e não se importa com a dor que possa causar aos seus leitores , com expressões como "(...)tu açoitado, que gemias(,,,)" e "(...)tu, enforcado, que morrias(...)".

Na primeira estrofe podemos sentir uma ponta de ironia na voz do sujeito poético, pois ele faz transparecer  que os humanos podem ser comparados à areia do deserto que por sua vez poderá ser comparada à areia do mar.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Miguel Torga


Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nasceu em 1907 em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, Trás-os-Montes, e faleceu em 17 de janeiro de 1995, em Coimbra.


Autor que por várias vezes foi nomeado para o Prémio Nobel da Literatura, tornou-se um dos mais conhecidos autores portugueses do século XX.


("Projecto Vercial", http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/torga.htm)